Embrapa Trigo

Dezembro, 2004
Passo Fundo, RS

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Introdução

Há palavras e expressões na língua inglesa que, apesar de terem um significado extremamente claro, são de difícil transposição para o português. Uma delas é hazards que, mesmo pertencendo ao vocabulário técnico da Meteorologia, pela sua importância e reflexos sociais e econômicos, deveria ser de domínio popular.

A dificuldade em encontrar a melhor tradução de hazards para o português não vem de hoje. Um dos mais importantes geógrafos brasileiros, o professor Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, destaca, por exemplo, que um dos últimos seminários com os seus alunos de pós-graduação na USP, em 1985, terminou com uma grande discussão sobre qual o melhor termo para expressar climatic hazards, no nosso idioma. O tema seria retomado por ele, em 1991, quando, dando por encerrada uma carreira de quatro décadas dedicadas à pesquisa e ao ensino universitário na Geografia, literalmente passou o bastão, sintetizando as suas contribuições no livro Clima e Excepcionalismo, publicado pela editora da UFSC (Monteiro, 1991).

Neste documento são feitas considerações sobre as expressões mais comumente usadas na língua portuguesa, quer seja como vocabulário técnico ou coloquialmente, para expressar questões relacionadas com eventos que se enquadram perfeitamente na categoria dos hazards. Para melhor entendimento, é apresentado e discutido o caso do furacão/ciclone Catarina, que atingiu a costa do Sul do Brasil (Santa Catarina e Rio Grande do Sul), nos dias 27 e 28 de março de 2004. Trata-se de uma atualização do capítulo "Os nossos hazards" (Cunha, 2004), incluindo resultados de análises e opiniões de meteorologistas sobre o evento Catarina, tornadas disponíveis a partir do XIII Congresso Brasileiro de Meteorologia, realizado em Fortaleza, CE, de 29 de agosto a 3 de setembro de 2004.

 

Eventos naturais extremos

Na categoria dos hazards incluem-se os chamados eventos naturais extremos. E esses vão desde os internos, caso de sismos e vulcanismos, até os atmosféricos. Os últimos, pela maior freqüência de ocorrência e dimensão dos impactos, sem dúvida, são os mais importantes. Exemplos mais conhecidos: avalanchas de neve, secas, enchentes, geadas, granizadas, descargas elétricas, vendavais, tornados e ciclones tropicais (furacões, tufões etc.). Em comum, a interação natureza x sociedade. E as ações humanas, no que diz respeito às decisões e iniciativas que envolvem os riscos inerentes a esses fenômenos, são fundamentais na caracterização dos hazards, mesmo que muitos deles tenham previsibilidade imperfeita, podendo ser antevistos apenas como probabilidades cujo tempo de ocorrência é desconhecido.

 

Por trás das definições acadêmicas

Retomando a questão inicial, ou seja, a melhor tradução em português para hazard, talvez seja o caso de se buscar não a melhor palavra, mas a mais adequada ou a menos incompleta, considerando-se os aspectos fundamentais subjacentes a esses fenômenos e o comportamento humano diante deles. Uma das primeiras palavras que surge na mente da maioria das pessoas é azar. Mas não parece ser a melhor, embora, além de caiporismo (má sorte ou infelicidade constante, a popular urucubaca), também tenha o significado de revés, fatalidade, desgraça, infortúnio, casualidade e acaso, que se enquadram bem com os fenômenos naturais anteriormente citados. Isso sem esquecer ainda o significado em linguagem de turfe: de azarão - cavalo que vence uma corrida, porém não estava entre os favoritos.

Risco é outra palavra que contempla alguns aspectos dos hazards. É a preferida dos franceses. Não pode ser menosprezada, pois envolve um forte componente antropogênico. E ainda mais considerando-se que o mau uso da natureza aumenta a probabilidade de riscos, aspecto este intimamente ligado ao conceito de hazard. Mas, também não é a melhor palavra, pois contempla particularmente, além de perigo ou possibilidade de perigo, a questão de perda e responsabilidade pelo dano (no sentido jurídico).

Há quem, ouvindo falar em hazard, logo a traduza por desastre, pois a palavra, literalmente, implica acidente calamitoso, especialmente o que ocorre de súbito e ocasiona grande dano ou prejuízo. Envolve ainda o aspecto funesto de desgraça, de sinistro ou de fatalidade. A origem latina de desastre (des + astrum), significando uma conjunção (des)favorável dos astros, induz à idéia de malefício e revela um julgamento de valor, que nem sempre pode ser considerado totalmente verdadeiro. Todavia, é a partir de desastre que começa a surgir uma das melhores alternativas, entre as comumente usadas: acidente. Ela traz implícito o significado de acontecimento casual, fortuito ou imprevisto. Ainda corresponde a acontecimento infeliz, casual ou não, de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, avaria, ruína, destruição, mortes, podendo até chegar à categoria de desastre mesmo (calamidade, catástrofe ou cataclismo).

 

O furacão/ciclone Catarina

Quem diria, um furacão nas águas frias do Atlântico Sul! De fato, pode não ser exatamente isso, embora os meteorologistas do Centro Nacional de Furacões, com sede em Miami, EUA, tenham sido categóricos em classificar assim o evento, que atingiu com maior intensidade a costa do sul de SC e norte do RS, na madrugada de domingo, 28 de março de 2004. Sua classificação foi de um furacão categoria 1 na escala Saffir-Simpson (ventos entre 120 e 150 km/h), mas o serviço meteorológico oficial brasileiro não concorda totalmente com a denominação dada ao fenômeno. Para detalhes da posição dos meteorologistas brasileiros, ver a reprodução da Nota Técnica Conjunta CPTEC/INPE e INMET (Anexo 1), sobre Ciclone Extratropical no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, divulgada em 29 de março de 2004.

Discordâncias acadêmicas à parte, o evento serve bem para ilustrar uma questão crucial para a sociedade brasileira: o gerenciamento da vulnerabilidade social e econômica ante os fenômenos da natureza. E mesmo que, passado o episódio, muitas críticas (a maior parte delas sem qualquer cabimento) tenham sido feitas aos institutos meteorológicos e organizações de Defesa Civil brasileiros, vale dizer que, não fosse pela atuação competente dessas instituições, o saldo trágico do episódio teria sido pior. Os danos materiais foram grandes, não havia como evitá-los. Porém, o número de mortes, durante a passagem do furacão/ciclone Catarina, foi muito inferior ao registrado em outros acidentes de origem meteorológica, de menor proporção, que, com maior freqüência, assolam o Brasil.

Além disso, discutiu-se muito sobre os reflexos desastrosos do furacão/ciclone (sistema com características híbridas, pela nota do CPTEC/INPE e INMET) no meio urbano. Entretanto, na atividade agrícola da região atingida, os prejuízos também foram elevados.

Uma breve, porém completa, cronologia do evento foi disponibilizada no site do Climerh/Epagri (http://www.climerh.rct-sc.br/ocorrencias.html), a qual é reproduzida na seqüência.

 

Especial - "Furacão Catarina"

Terça-feira e quarta-feira 23 - 24/3/2004 - Perturbação no oceano monitorada pela Epagri

Os meteorologistas da Epagri observam uma pequena perturbação atmosférica sobre o oceano, visível pelas imagens de satélite, e começam a monitorar atentamente a evolução desse sistema.

Quinta-feira 25/3/2004 - tarde - Ciclone se forma sobre o oceano

A perturbação observada sobre o oceano se organizou, tomando uma forma ciclônica. Pôde ser visto, de forma bem definida, o "olho" no centro do sistema, chamando a atenção dos meteorologistas. Foi a primeira vez que esse tipo de sistema foi observado formando-se sobre o Atlântico Sul e se deslocando para oeste, em direção à costa.

Sexta-feira 26/3/2004 - 9h - Meteorologistas avisam Defesa Civil de SC

Verificando a intensificação do até então ciclone e seu deslocamento em direção ao continente, a equipe de previsão de tempo da Epagri entrou em contato com a Defesa Civil de Santa Catarina, solicitando a presença de um representante desta.

Sexta-feira 26/3/2004 - 9h - Epagri alerta pescadores sobre o ciclone

As embarcações pesqueiras que se encontravam em alto-mar, próximas à área de deslocamento desse ciclone, foram contatadas pela base de radiocomunicação da Epagri, em Passo de Torres. Avisadas da presença desse ciclone, as embarcações foram direcionadas para fora da área de risco, e as tripulações começaram a emitir a cada meia hora um resumo das condições do vento e do mar, auxiliando os meteorologistas no monitoramento do fenômeno.

Sexta-feira 26/3/2004 - 15h - Divulgado primeiro alerta a população e pescadores

A Epagri libera o primeiro aviso especial, alertando para as condições de ventos fortes e mar agitado durante o sábado, na região entre a Grande Florianópolis e Litoral Sul-catarinense. A base meteopesca de Passo de Torres emitiu o primeiro boletim de alerta de ventos fortes e mar agitado para todos os pescadores da Costa Sul do Brasil.

Sexta-feira 26/3/2004 - 16h - Pesqueiros registram ventos de 70 km/h

As tripulações das embarcações de pesca que estavam em alto-mar começaram a enviar informações sobre a ocorrência de temporais e rajadas de vento muito fortes próximo ao ciclone, de até 70 km/h, e ondas de até 3,5 metros. De acordo com essas informações, os meteorologistas da Epagri continuaram monitorando a posição dessas embarcações que estavam em alto-mar, direcionando-as para áreas de menor risco. Foi decidido, em reunião com o chefe do Ciram, que, a partir da noite de sexta-feira, haveria um esquema de plantão 24h no Centro de Meteorologia da Epagri, para o monitoramento do sistema, com presença de meteorologistas e equipe de apoio.

Sexta-feira 26/3/2004 - noite - NOAA classifica como furacão

A NOAA, Agência Americana para os Oceanos e a Atmosfera, classificou o sistema que se encontrava ao largo de Santa Catarina como um furacão, segundo Saffir-Simpson, classe 1.

Sábado 27/3/2004 - 1h30min - Governador declara estado de alerta para Litoral Sul

Reunião da Defesa Civil com o governador do estado de Santa Catarina, com a presença de dois meteorologistas da Epagri. O governador assumiu o controle e foi decretado estado de alerta. A área de risco que poderia ser atingida pelo furacão foi estimada entre a Grande Florianópolis e o Litoral Sul de Santa Catarina.

Sábado 27/3/2004 - madrugada - Pesqueiros sofrem avarias sob ventos de 100 km/h

Segundo informações repassadas pela Base Meteopesca de Passo de Torres, várias embarcações foram atingidas por ventos muito fortes, que, em alguns momentos, segundo a estimativa dos pescadores, superaram os 100 km/h. Antenas de rádio foram arrancadas, material de pesca perdido, vidros quebrados e, em algumas embarcações, a borda do barco foi arrancada.

Sábado 27/3/2004 - 7h - Furacão "Catarina" avança em direção ao litoral

A Epagri liberou aviso especial batizando o furacão como "Catarina" e alertando sobre seu deslocamento rumo ao Litoral Sul-catarinense e parte do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. As áreas consideradas de risco, entre o norte do Rio Grande do Sul e a Grande Florianópolis, foram alertadas sobre a possibilidade de temporais e ventos intensos, com rajadas de até 150 km/h. A Defesa Civil de Santa Catarina já estava em situação de alerta, tendo deslocado 3.000 homens para o Litoral Sul de Santa Catarina. Inicia-se o plantão de um meteorologista na central de operações da Defesa Civil em Florianópolis, pelas próximas 48 horas.

Sábado 27/3/2004 - 14h - Ventos ganham força em toda a costa catarinense

Na tarde de sábado, os ventos começaram a se intensificar em toda a costa, enquanto, no mar, os pescadores continuavam a enviar informações sobre rajadas de vento próximas a 90 km/h e ondas que já atingiam picos de 4 metros de altura. As barras de acesso ao Porto de Laguna e de Passo de Torres fecharam no período da tarde, por causa da forte agitação marítima que começou a atingir a costa. Muitas embarcações de pesca ficaram retidas lá fora. Em Passo de Torres, cinco embarcações não conseguiram entrar na barra, deslocando-se em direção ao Rio Grande do Sul para escapar da rota do furacão, conforme instruções fornecidas pelos meteorologistas da Epagri, o que salvou vidas. Nesse momento o furacão estava se deslocando em direção a Laguna.

Sábado 27/3/2004 - noite - Furacão avança em direção ao extremo sul do estado

O furacão deslocava-se rapidamente em direção à costa, e foi verificado pelos meteorologistas que, dentro das próximas horas, atingiria a região ao sul do Cabo de Santa Marta. Além disso, informações de Arroio do Silva indicavam ressaca nessa localidade, já com destruição de construções à beira da praia. A Epagri entrou em contato com o serviço de resgate da marinha em Rio Grande, o Salvamar Sul, avisando sobre as embarcações que não conseguiram abrigo.

Domingo 28/3/2004 - madrugada - Furacão "Catarina" sobre o estado de Santa Catarina

O furacão Catarina está com o "olho" já totalmente no continente e ainda está bastante intenso, provocando ventos, em alguns municípios do Litoral Sul, de mais de 100 km/h. Entre a noite de sábado e a madrugada deste domingo, os ventos fortes de 100 a 150 km/h provocaram destruição, como destelhamento de casas e queda de árvores, entre outros danos, em Arroio do Silva, em Araranguá, em Sombrio, em Rincão e em Criciúma. O mar está agitado, com picos de onda de até 5 metros próximo à costa, caracterizando ressaca em boa parte do Litoral Sul-catarinense.

Domingo 28/03/2004 - 7h30min - Furacão "Catarina" perde força

O furacão Catarina, que se encontra quase todo dentro do estado de Santa Catarina, começava a perder força, mas ainda ocorriam vento forte e chuva no Litoral Sul, no Planalto Sul-catarinense e no nordeste do RS.

Domingo 28/3/2004 - 9h30min - Duas embarcações naufragam e 11 pescadores estão desaparecidos

Duas embarcações de pesca, Válio II e Antônio Venâncio, naufragam próximo a Lage de Campo Bom, ao sul do Cabo de Santa Marta. Um dos tripulantes da embarcação Válio II foi resgatado pela embarcação Rocha IV. Onze tripulantes estão desaparecidos.

Segunda-feira 29/3/2004 - 10h - Marinha resgata dois pescadores, um com vida

A Marinha resgata dois tripulantes da embarcação Válio II. Nove pescadores continuam desaparecidos.

Segunda-feira 29/3/2004 - 13h - Marinha resgata mais um pescador

O pescador Amilton Antonio Rosa foi resgatado com vida pela marinha. Restam 8 desaparecidos.

 

Depois do furacão/ciclone Catarina (contabilizando os prejuízos)

Passado o acontecimento, chegou a hora de contabilizar os prejuízos. Tomando-se como referência as informações disponibilizadas pelo Centro de Operações da Defesa Civil de Santa Catarina, em 8 de abril de 2004, o saldo foi este: pessoas atingidas - (27.560 desalojados, 2.589 desabrigados, 3.016 deslocados, 518 feridos e 1 morto, além de 7 náufragos desaparecidos, 3 resgatados com vida e 2 resgatados em óbito); moradias - (35.873 residências danificadas e 993 destruídas); estabelecimentos comerciais - (2.274 danificados e 472 destruídos); prédios públicos - (397 danificados e 3 destruídos). Informações detalhadas por município podem ser encontradas nas tabelas 1 e 2. No Rio Grande do Sul, conforme relato do Sindicato dos Trabalhadores(as) Rurais de Torres, nesse município foram mais de três mil casas destelhadas e 90% das árvores da cidade derrubadas, além de danos nas estruturas de eletricidade e de telefonia.

Na agricultura da região afetada, os prejuízos também foram vultosos. Levantamentos da Fetag-RS, no caso do Rio Grande do Sul (Tabela 3), mostraram que, nos municípios de Mampituba, de Morrinhos do Sul, de Dom Pedro de Alcântara e de Torres, os danos nas culturas de arroz e de banana, principalmente, contabilizam R$ 15.985.192,00.

Em Santa Catarina, nos municípios do litoral sul desse estado, os estragos foram elevados no meio rural. Levantamentos da Epagri-Gerência Regional de Araranguá, diagnosticaram, somente em termos de construções rurais (estufas, galpões, silos, engenhos e aviários), danos orçados em R$ 15.087.650,00 (Tabela 4). Na agricultura regional, considerando-se as perdas nas principais culturas (arroz, milho, mandioca, feijão, banana, maracujá, moranga, fumo e reflorestamento, com conseqüências negativas para a produção de mel), o prejuízo foi de R$ 68.955.246,00 (Tabela 5).

 

O furacão/ciclone Catarina no XIII Congresso Brasileiro de Meteorologia

Quase simultaneamente à ocorrência do furacão/ciclone Catarina, espalharam-se, pelo mundo, notícias que destacavam o registro do primeiro furacão no Atlântico Sul. O fato motivou amplos debates na comunidade científica envolvida diretamente com esse tipo de fenômeno meteorológico. E mesmo que o Catarina, nas imagens de satélite, se assemelhasse, visualmente e no comportamento, a um furacão, não houve (e parece que ainda não há totalmente) consenso quanto à denominação apropriada.

As dificuldades começaram com o nome da tempestade. Em razão de não haver uma lista oficial de nomes para furacões no Atlântico Sul, a imaginação correu solta, surgindo: O1L Alfa, Adão (o primeiro homem), Anita (homenagem a Anita Garibaldi) etc., até que, oficiosamente, os catarinenses, em alusão ao estado de Santa Catarina, denominaram o fenômeno de Catarina. E mesmo sendo chamado de furacão, as dúvidas persistiram: seria essa tempestade realmente um furacão?

Apresentaram-se argumentos fortes em defesa do sim, por um lado, e, por outro, questões teóricas de base contrapondo-se fortemente à opinião dos que consideravam o Catarina passível de ser enquadrado na categoria dos furacões (começando pela sua origem subtropical). Apesar de discutível, surgiu (e ganhou adeptos) a tentativa de classificação do evento como um sistema misto (tropical/extratropical), com características híbridas (furacão/ciclone). Independentemente da denominação, o Catarina não foi o primeiro sistema com características de furacão no Atlântico Sul. Em janeiro de 2004, por exemplo, já havia sido observado algo similar, embora não tão poderoso quanto o Catarina (Halverson, 2004).

O furacão/ciclone Catarina foi objeto de debates e trabalhos apresentados no XIII Congresso Brasileiro de Meteorologia, realizado em Fortaleza, CE, de 29 de agosto a 3 de setembro de 2004. Com base nos resumos disponibilizados nos anais do evento, procurou-se traçar uma síntese da visão dos meteorologistas brasileiros sobre o fenômeno que atingiu a costa do Sul do Brasil (sul de SC e norte do RS), na virada do dia 27 para 28 de março de 2004.

Inicialmente, conforme descrevem Calearo et el. (2004), - equipe do Climerh/Epagri que esteve diretamente envolvida com o episódio Catarina , foi observada uma perturbação que pareceu desprender-se de uma frente fria no oceano e que, em dois dias, adquiriu características típicas de furacão, com bandas de nuvens convergentes em espiral e um olho bem definido, além de um deslocamento de leste para oeste, comportamento atípico para movimentos ciclônicos no Atlântico Sul.

No Atlântico Sul, ao sul da latitude de 20º S, vórtices ciclônicos extratropicais frios são ocasionalmente observados, quase sempre em associação com ventos acima de 60 km/h, quando atingem a costa da Região Sul do Brasil. Todavia, há necessidade de melhor entendimento dos mecanismos de formação dos ciclones extratropicais sobre a América do Sul (Mendes & Mendes, 2004). No caso do Catarina, Diniz & Kousky (2004) estudaram o desenvolvimento do sistema, no Atlântico Sul, a cerca de 1.000 km da costa da Região Sul, entre os dias 22 e 28 de março de 2004. A evolução do Catarina deu-se a partir de um vórtice ciclônicos anômalo de pequena escala (subsinóptica), formando um vórtice ciclônicos extratropical frio até um tropical. O ciclone deslocou-se para oeste, atingindo o sudeste de Santa Catarina e o nordeste do Rio Grande do Sul, com ventos fortes (sem registros) e fortes precipitações pluviais acumuladas (186 mm, em Cambará do Sul). Os danos causados na região costeira do Sul do Brasil entre os dias 27 e 28 de março de 2004 indicaram ventos de até 150 km/h (Gevaerd et al., 2004).

O ineditismo do ocorrido (pelo menos em intensidade e danos ocasionados) serviu de justificativa para que o episódio Catarina fosse discutido em sessão especial da "26th Conference on Hurricanes and Tropical Meteorology", realizada na cidade de Miami, EUA, em maio de 2004. Nessa ocasião, pelo relato de Dias et al. (2004), divulgou-se como consenso que o ciclone que atingiu a costa de Santa Catarina apresentara características híbridas, típicas de furacões tropicais e de ciclones extratropicais. Sistemas semelhantes formam-se na costa SE da Austrália. Apresentam núcleo quente no olho, imerso em um grande sistema frio na baixa/média troposfera, com núcleo quente na alta troposfera. Essa categoria de sistema passou a ser classificada como "furacão" no National Hurricane Center, em Miami, mas não é assim classificada na Europa e na Austrália. A origem do Catarina como um ciclone extratropical foi reforçada por Menezes & Dias (2004).

Mesmo que o Centro Nacional de Furacões dos Estados Unidos tenha classificado o episódio como um "furacão categoria 1" (Gusso, 2004), algumas características do Catarina, segundo Mattos & Satyamurty (2004), diferem-no claramente de um ciclone tropical. Por exemplo, na sua trajetória observada de leste para oeste, sem um componente para o Pólo, o ciclo de vida foi de três dias, em vez de uma semana para os ciclones tropicais, e nenhum núcleo quente foi claramente observado, exceto na troposfera superior.

Para resumir, cabe destacar, que existe na natureza um vasto espectro de vórtices atmosféricos intensos. Nos extremos dessa escala, identificam-se, numa extremidade, os furacões (tendo como origem energética o calor latente armazenado nas águas dos oceanos tropicais - núcleo quente) e, na outra, os ciclones extratropicais (originados a partir de perturbações que se propagam ao longo da Zona de Convergência Extratropical ("frente polar") – núcleo frio). Ambos apresentam um centro na forma de olho, torres de nuvens de tempestade e, freqüentemente, misturam vento e chuva com a água do oceano. Entre esses extremos cabem todos os demais vórtices. E é nessa "zona nebulosa", pelo que sugerem os meteorologistas, que parece se enquadrar o tal sistema tipo híbrido no qual estão classificando o "Brazilcane", chamado de Catarina (conforme Halverson, 2004).


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