Embrapa Trigo
 
Abril, 2014
150
Passo Fundo, RS
Origem e usos do triticale

O primeiro relatório descrevendo a produção de plantas híbridas entre trigo e centeio foi apresentado, em 1875, à Sociedade Botânica de Edimburgo, na Escócia, pelo botânico Stephen Wilson. O híbrido reportado era estéril devido a grãos de pólen disfuncionais (AMMAR et al., 2004). Em 1884, Carman publicou ilustrações de uma planta híbrida de trigo e de centeio, parcialmente fértil, na revista Rural New Yorker (AMMAR et al., 2004) e, em 1888, o pesquisador alemão Wilhem Rimpau produziu o primeiro híbrido estável (AMMAR et al., 2004; McGOVERIN et al., 2011). A palavra "triticale" é uma fusão das palavras em latim triticum (trigo) e secale (centeio) e foi sugerida, em 1935, por Lindschau e Oehler (LINDSCHAU; OEHLER, 1935).

A primeira observação de ocorrência natural de híbridos de trigo e de centeio, todos estéreis e do sexo masculino, foi registrada em 1918 na Estação Experimental Agrícola de Saratov, na Rússia. Este fato deu início a uma série de estudos conduzidos entre 1918 e 1930, que formataram as bases para compreensão das restrições de obtenção de um híbrido (AMMAR et al, 2004; OETTLER, 2005).

Inúmeros cruzamentos entre trigo e centeio resultaram em híbridos com diferentes níveis de ploidia e, do ponto de vista da citotaxonomia, o triticale é classificado em três tipos: octoploide3 e tetraploide. Kiss (1966), citado por Oettler (2005), sugeriu uma distinção dos triticales hexaploides entre triticale primário (alopoliploides recém-sintetizados a partir de trigo e de centeio) e triticale secundário (genótipos derivados de cruzamentos de triticales primários, independentemente dos seus níveis de ploidia, ou genótipos derivados de cruzamentos de triticales primários com trigo e centeio).
Atualmente, grande parte das cultivares disponíveis tem como base triticale hexaploide, que apresenta superioridade e melhor estabilidade quando comparado com as demais formas (OETTLER, 2005). A China é o único país onde o triticale octoploide é cultivado comercialmente, embora de forma não expressiva (WANG et al., 2010), por sua alta qualidade na fabricação de pão cozido, que é alimento tradicional naquele país (BAO; YAN, 1993, citado por WANG et al., 2010, p. 79).

Na década de 1930, estudos de híbridos produzidos na busca de estabilidade foram conduzidos na Suécia e na Alemanha e, nas décadas de 1940 e de 1950, programas de melhoramento genético foram estabelecidos na URSS, na Hungria, na Suécia e na Suíça (OETTLER, 2005). Em meados dos anos de 1950, programas comerciais de melhoramento de triticale foram criados na Espanha, no Canadá e na Hungria (AMMAR et al., 2004; OETLLER, 2005). Na década de 1960, novos programas de melhoramento surgiram no México (OETLLER, 2005) e na Polônia (ARSENIUK; OLEKSIAK, 2004; OETLLER, 2005) e, na década seguinte (1970), na Austrália, na Itália, na França (OETLLER, 2005), no Brasil (BAIER; NEDEL, 1985), em Portugal (EXPERIENCES..., 2002) e na Austrália (COOPER et al., 2004). A partir da década de 1960, o Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo (CIMMYT), no México, passou a pesquisar o cereal e a desenvolver linhagens que foram distribuídas para diversos países (AMMAR et al., 2004). Entre 1975 e 2000, a distribuição global de linhagens pelo CIMMYT resultou na liberação de 146 cultivares para produção comercial em 23 países nos cinco continentes (AMMAR et al., 2004).

As primeiras cultivares comerciais de triticale foram lançadas em 1968: triticales de inverno nº 57 e nº 64 (frutos de cruzamento octoploide-hexaploide) na Hungria (AMMAR et al.; OETLLER, 2005) e triticale de primavera Armadillo, no México, pelo CIMMYT (OETLLER, 2005). Em 1969, outras duas cultivares de primavera foram lançadas, uma na Espanha (Cachurulu) e outra no Canadá (Rosner) (AMMAR et al., 2004; OTLLER, 2005). No catálogo de variedades certificadas da Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) (OECD, 2013), 363 cultivares de triticale estavam registradas até julho de 2013.

As vantagens do triticale incluem o alto rendimento de grãos, a resistência a estresses bióticos e abióticos e a composição nutricional do grão (ZECEVIC et al., 2010). A composição química do triticale é mais similar à do trigo que à do centeio (McGOVERIN et al., 2011) e próxima à do milho (Tabela 1).

O teor de proteína bruta do grão varia entre 9% e 20% da matéria seca (McGOVERIN et al., 2011) e o conteúdo de lisina, aminoácido limitante na maioria dos cereais, é maior que o encontrado no trigo ou no centeio (STALLKNECHT et al., 1996). O maior teor de lisina no triticale permite reduzir o percentual de farelo de soja na dieta; no entanto, em alguns casos, o menor teor de energia acarreta pior conversão alimentar (LIMA et al., 2001). Os teores de amido variam de 66% a 73% da matéria seca e a maior fração de polissacarídeos não-amiláceos consiste em arabinoxilanos (McGOVERIN et al., 2011), que são considerados antinutritivos em rações animais, podendo influenciar negativamente no consumo de ração, na digestibilidade de nutrientes e no desempenho geral do crescimento, devido à alta viscosidade e a propriedades de retenção de água (McGOVERIN et al., 2011). A atividade da fitase de triticale tem sido relatada como intermediária, entre a de centeio e de trigo (McGOVERIN et al., 2011).

Na alimentação humana, a farinha de triticale é empregada na produção de biscoitos, massa para pizzas, bolos, waffles, panquecas, tortillas e outros derivados de baixa fermentação. Seu uso limitado na produção de derivados de panificação está associado à qualidade inferior no conteúdo de glúten4, bem como à necessidade de investimentos adicionais necessários para implantação de sua moagem quando comparado à estrutura de moagem de trigo. Embora o teor médio de proteína no grão de triticale seja elevado, os teores de glúten são menores do que os de grãos de trigo (ZECEVIC et al., 2010). Segundo McGoverin et al. (2011), a textura geralmente brandado triticale deixa seu uso para alimentação humana limitado a produtos forneados por tempo curto, tais como biscoitos e bolos.

Segundo Peña (2004), as primeiras cultivares de triticale tendiam a fornecer baixos rendimentos de farinha devido à estrutura dos grãos (longos, com vinco profundo e enchimento incompleto), enquanto que cultivares mais recentes possuem melhores formato e enchimento de grão com obtenção de rendimento de farinha igual ou próxima a de trigo. Peña e Amaya (1992) sugerem o uso de mistura de trigo e de triticale para melhorar o desempenho de moagem e, segundo Tohver et al. (2005) e Peña e Amaya (1992), pães produzidos com misturas de 50% de farinha de triticale e 50% de farinha de trigo resultaram em pães de qualidade similar aos produzidos com somente farinha de trigo.

Em algumas regiões da Turquia, até 30% de farinha de triticale é usada em mistura com farinha de trigo para panificação (DOGAN et al., 2009). Na China, tradicionalmente o triticale é utilizado por agricultores em zonas de montanha para fazer pão cozido no vapor, panquecas e macarrão (WANG et al., 2010).

Embora o triticale apresente potencial de uso na alimentação humana, este é usado, principalmente, na alimentação animal (suínos, aves e ruminantes), em todas as suas formas: grãos, forragem, silagem, feno e palha. Em alguns países, como Alemanha, China, Polônia e França, o cereal é amplamente utilizado para tal fim. Na Alemanha, segundo o Federal Ministery of Agriculture (TRITICALE-INFOS, 2013a), o triticale representou de 2,7% a 6,9% do total de grãos empregados na produção de ração industrial nas safras de 2007/2008 a 2010/2011.

Parâmetros nutricionais de dietas com triticale não diferiram significativamente dos de trigo, tendo como vantagens o teor mais elevado de proteína (em comparação ao milho); maior digestibilidade de proteína bruta; menor teor de fibra (em comparação ao farelo de trigo); alto teor de fósforo5; e período de colheita coincidindo com o final da entressafra de milho de verão, especialmente em regiões mais frias. Como todos os demais grãos, a proteína de triticale é deficiente em cisteína, metionina, treonina e lisina, mas apresenta melhor balanceamento de aminoácidos que milho e sorgo, incluindo maior teor de lisina e metionina. Em relação ao milho, o triticale apresenta inferior valor de energia bruta, digestível e metabolizável, assim como inferior valor biológico de proteína, em relação ao trigo.

No caso de aves, com exceção do tipo tetraploide, o triticale é semelhante ao trigo e superior ao centeio como alternativa de ingrediente em rações de frango (SALMON et al., 2004). O emprego de diferentes níveis de inclusão de triticale em substituição ao milho (0, 25%, 50% e 75%), em dietas para frangos de corte, não afetou o ganho de peso, o consumo de ração e a conversão alimentar; entretanto, alguns estudos baseados em dietas contendo triticale como grão predominante apresentaram efeito de redução sobre o desempenho de frangos, o que pode estar relacionado ao menor conteúdo em energia metabolizável, ao desbalanceamento de aminoácidos e à presença de inibidores de tripsina, conforme a cultivar de triticale utilizada (LIMA et al., 2001).

Experimentos de substituição de milho por triticale na alimentação de suínos em diferentes fases, conduzidos por Lima et al. (2001), concluíram que: (a) em dietas para leitões após o desmame, dos nove aos 24 kg de peso vivo, a substituição de até 100% do milho por triticale não influenciou qualquer das variáveis estudadas; (b) de maneira geral, pode-se inferir que o triticale pode substituir até 75% do milho em dietas de suínos em crescimento-terminação; e (c) o triticale pode substituir até 75% do milho na dieta de suínos em fase de terminação, sem causar efeito depressivo no desempenho dos animais, desde que sejam mantidos os níveis de nutrientes da dieta.

O triticale também é usado como fonte de alimentação de ruminantes (gados bovino, ovino e caprino) para produção de forragem verde, silagem (de planta jovem, de planta adulta ou de grãos úmidos), feno ou uso de grão na suplementação. Os níveis mais baixos de glúten e de beta-glucanas observados no triticale, assim como a menor tendência para acidificar o intestino de ruminantes, colocam o cereal em posição favorável para alimentação destes animais, sendo o desempenho muito semelhante àqueles alimentados com milho ou cevada (SALMON et al., 2004).

O uso do cereal como pastagem pode ocorrer isolado ou em consórcio com outras forragens (gramíneas ou leguminosas) para melhoria da palatabilidade e qualidade nutricional, fornecendo forragem nos meses de junho e julho, época de baixa disponibilidade de alternativas forrageiras na região sul do país. No caso de silagem, sua qualidade nutricional é função da matéria prima utilizada. Segundo Lima et al. (2001), silagem de planta inteira, em início de maturação, tem rendimento elevado de energia e de proteína bruta, porém é de baixa digestibilidade; silagem de planta jovem tem rendimento menor, alto teor de proteína bruta e boa digestibilidade de matéria seca; e silagem do grão apresenta boa digestibilidade e maior concentração de energia e de proteína bruta, podendo ser usada para alimentar suínos e bovinos.

Na alimentação de carpa comum, a alimentação suplementar com uso de triticale resultou em nível de gordura alto, mas nível baixo de ácidos graxos poli-insaturados (McGOVERIN et al., 2011). Em estudo de digestibilidade de triticale na alimentação de tilápias-do-nilo e substituição de até 100% de milho por triticale na dieta, não houve prejuízo no desempenho e no custo da alimentação, nem alteração de características de carcaça (BOSCOLO et al., 2002; TACHIBANA et al., 2010).

Fatores antinutricionais podem restringir o uso de triticale na alimentação animal, como contaminação com ergotamina e outros compostos tóxicos produzidos pelo fungo Fusarium spp., e pela presença de inibidores de proteases, em especial de tripsina e de quimotripsina, que reduzem a digestibilidade da proteína e limitam o uso em ração de monogástricos (ZARDO; LIMA, 1999).

Cultivares modernas de triticale são matéria-prima competitiva para produção de etanol (McGOVERIN, 2011). O triticale possui sistema enzimático autoamilolítico, que auxilia na conversão de grandes quantidades de amido em açúcares fermentáveis, anulando, em alguns casos, a necessidade de adição de enzimas para degradação de amido (PEJIN et al., 2009). Na comparação de custos de produção de bioetanol de centeio, triticale e trigo, realizada por Rosenberg et al. (2002), o triticale apresentou o menor custo por litro devido ao alto rendimento de etanol por hectare.

Além da produção de etanol, o cereal pode ser utilizado para a produção de biogás e de biocombustíveis sólidos (McGOVERIN, 2011). Uma parcela crescente de triticale tem sido usada para produção de etanol e de biogás na Alemanha e na Polônia, um total estimado em 450,0 mil de toneladas (KNIGHT, 2012).

Em 2006, no Canadá, o programa de desenvolvimento tecnológico chamado “Canadian Triticale Biorefinery Initiative” reuniu 60 cientistas e engenheiros, em 30 projetos de pesquisa, para viabilizar o uso de grão e de palha de triticale para produzir uma variedade de produtos, como materiais de construção, ração animal, produtos químicos especiais, plásticos biodegradáveis e biocombustível (EUDES, 2006).

Outros registros de uso da cultura podem ser citados: como cultura de cobertura para evitar erosão em solos de vinhas da África do Sul; para controlar a erosão do vento em áreas de produção de algodão do Texas; como cultura para recuperação de solos compactados e poluídos na antiga Tchecoslováquia; para produção de material de isolamento na construção de edifícios, como painéis e tapumes (VARUGHESE et al., 1997); uso de subprodutos de triticale, tais como farelo de triticale e palha, como fontes de compostos fenólicos6 para aplicações alimentares e nutracêuticas (HOSSEINIAN; MAZZA, 2009); como base para produção de grafite para perfuração petrolífera; como matéria-prima para polpa para fabricação de papel; e como matéria-prima para artesanato.


3O teor de glúten é um dos parâmetros de boa qualidade de panificação.
4 Algumas cultivares, como Beagle 82 e Wintri, podem apresentar o dobro de concentração de fósforo que o milho, o que representaria redução na quantidade de fósforo suplementado à dieta (LIMA et al., 2001).
5 Tais como ácidos fenólicos, proantocianidinas e lignanas.
6 Dados calculados pelos autores com base em dados de FAO (2013), considerando a média móvel dos rendimentos.

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