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O príncipe e o trigo
Gilberto
R. Cunha
Embrapa Trigo, Caixa Postal 451,
CEP 99001-970 Passo Fundo, RS.
O príncipe e o trigo não é uma fábula. É
história real. E história da triticultura brasileira.
Há dois episódios na história do Brasil que, aparentemente
sem qualquer relação direta, estão ligados pela cultura
de trigo. São eles: a colonização açoriana
no Rio Grande do Sul e a abertura dos portos às nações
amigas, feita pelo então príncipe regente Dom João.
Os açorianos foram trazidos para o Rio Grande do Sul por volta
de 1740. Receberam terras, ferramentas, animais e sementes. O governo português
encorajou a produção de trigo. E assim o RS, entre 1780 e
1817, tornou-se um exportador de trigo. O trigo gaúcho era enviado
para o Rio de Janeiro, para Salvador e para Recife. E, ao contrário
do que ocorre hoje, até mesmo para as colônias espanholas
na América do Sul.
Em 1806, Napoleão Bonaparte dominava a Europa. França
e Inglaterra eram os grandes inimigos. Portugal, mantendo estreitas relações
comerciais com a Inglaterra, estava sob a ameaça de invasão
pela França e pela Espanha. E foi assim que o príncipe regente
de Portugal Dom João (Dom João VI foi coroado rei em 6 de
fevereiro de 1818), pois da rainha, Dona Maria I, dizia-se polidamente
que sofria das faculdades mentais, decidiu, sob aconselhamento, mudar-se
com a sua corte para o Brasil. Dom João e a corte (ao redor de 10.000
pessoas em 15 navios) chegaram ao Brasil em 1808.
Para adaptar o país às novas condições políticas
e econômicas, Dom João decretou, em 28 de janeiro de 1808,
a famosa "abertura dos portos do Brasil às nações
amigas". De certa forma, era a incorporação de conceitos
de livre-mercado. Como o modo de produção brasileiro permaneceu
antigo, a coroa portuguesa perpetuou a dependência da economia colonial.
A essa altura, há que se perguntar: E o trigo, onde entra nessa
história? Pois bem, no RS produzia-se e exportava-se trigo. Saint-Hilaire,
em seus relatos de viagem, destaca que viu, por toda a parte, lavouras
de trigo com excelente aspecto. Porém, após 1820 o trigo
sumiu do estado. Somente ressurgindo na segunda metade do século
XIX.
Durante muito tempo apontou-se como causas do desaparecimento do trigo
no RS do século XIX: (1) A falta de pagamento pela coroa (improvável
como causa principal) e (2) As epidemias de ferrugem (certamente tiveram
uma forte influência negativa na produção).
Em seu livro de 1897 – Cultura dos Campos- , Joaquim Francisco de Assis
Brasil escreveu : " A tradição diz que foi a ferrugem que
fez abandonar a cultura do trigo no Rio Grande." Essas duas razões
não explicam satisfatoriamente o declínio do trigo gaúcho
no passado. O americano Gregory G. Brown, em artigo publicado na revista
The Americas (v. 48, n. 3, p. 315-336, 1991), destaca que apesar do problema
da ferrugem em outros países, existindo mercado, foi encontrada
uma solução. Assim, ele atribui à falta de mercado
como a principal causa de abandono do cultivo de trigo no RS, na primeira
metade do século XIX. Pois, com a abertura dos portos brasileiros
(1808) e os novos tratados comerciais (1810) entrou no mercado brasileiro
uma grande quantidade de farinha de trigo vinda diretamente dos Estados
Unidos. Preço, qualidade do produto e acordos comerciais envolvendo
as exportações brasileiras de café e de açúcar
barraram o interesse e os investimentos necessários para dar competitividade
ao trigo brasileiro. Diz-se que a farinha de trigo americana "inundou"
o Brasil, após 1815. Entre 1815 e 1822, 494 navios carregados de
farinha de trigo para o Brasil, partiram de portos americanos. E assim,
por ocasião da independência do Brasil (1822), o produtor
de trigo havia desaparecido do território gaúcho. O retorno
ao cultivo desse cereal no estado, deu-se com a colonização
italiana, em 1875.
Na história recente do país, uma nova abertura comercial
abalou a triticultura nacional. Foi em 1990, com a saída da atuação
do Estado no complexo agroindustrial do trigo – Lei 8.096 de 21 de novembro
de 1990 - . Novamente, preços subsidiados no mercado internacional,
taxas de juros e prazos de pagamento diferenciados, pegaram o produtor
brasileiro sem capacidade de competição. E assim, o Brasil
no início dos anos 90, apesar de possuir terras, clima adequado,
tecnologia própria e produtores experientes para ser auto-suficiente,
ou até mesmo exportador desse cereal, tornou-se um dos principais
países importadores de trigo.
Nos últimos dois anos, a cultura de trigo, embora muito aquém
de nossas potencialidades, voltou a ser incrementada no Brasil. Para isso
contribuiram as contingências do mercado internacional de trigo e
algumas políticas levadas a cabo pelo governo brasileiro, tais como
a securitização de dívidas de produtores, o zoneamento
agrícola, aliado à disponibilidade de crédito e o
PEP (Prêmio para Escoamento de Produto), entre outras.
Abertura de mercado e setor produtivo despreparado para a competição.
Pelo menos no trigo, guardadas as proporções, a história
se repetiu. E olha que os fatos – colonização açoriana
e abertura dos portos às nações amigas – são
tratados nos livros de história da escola primária.
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