Embrapa Trigo

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Dezembro, 2001
Passo Fundo, RS

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AQUECIMENTO GLOBAL E AGRICULTURA

Gilberto R. Cunha1

Muita coisa mudou desde o fim do Século XIX, quando o químico sueco Svante August Arrhenius (1859-1927) advertiu que a atividade industrial, apesar de incipiente na época, era responsável por um aumento na concentração dos chamados gases de estufa na atmosfera e que isso poderia causar mudanças no clima mundial. Entretanto, a indiferença da humanidade diante desse possível problema continua a mesma.

É compreensível que os contemporâneos de Arrhenius não lhe tivessem dado atenção. Afinal, naqueles idos tempos não existiam instrumentos precisos para medição de gases na atmosfera e sequer séries históricas de dados para comparações. Além do que, Arrhenius foi, de certo modo, otimista com as mudanças climáticas que previu. Pois, para as regiões geladas do planeta, caso da Suécia, um pequeno aquecimento não seria de todo mau.

Passados 150 anos do que se convencionou chamar de Revolução Industrial, e pouco mais de cem do "aviso" dado por Arrhenius, o problema e as discussões sobre o tema permanecem tão atuais e antigos como dantes. No grande debate mundial sobre mudanças climáticas, destacam-se, hoje, claramente, dois componentes. Um de natureza estritamente científica e outro de ordem política. O primeiro dependente de resultados de pesquisa, e o segundo atrelado a acordos, convenções, compromissos, protocolos e decisões oriundas de debates, que, mesmo altamente ideologizados, podem ser obtidas por consenso. Em Ciência não se chega a lugar nenhum por consenso. É a divergência, mesmo em minoria, que possibilita os avanços. Politicamente é diferente: o consenso, muitas vezes, pode ser o mais conveniente. O que não pode, no caso das mudanças climáticas globais, é ficar-se adiando decisões políticas, nitidamente consensuais, com argumentos de espera por resultados científicos menos incertos, e quem sabe também consensuais. Consenso na Ciência, neste e em outros casos, nunca existirá plenamente.

Na comunidade científica, quando o assunto é o aquecimento global e suas possíveis mudanças climáticas, há muitos pontos de convergência e algumas controvérsias. Por exemplo, evidências empíricas e teóricas indicam que mudanças climáticas globais, incluindo o tão falado aquecimento do planeta, são inevitáveis, caso a concentração dos gases de estufa na atmosfera continue aumentando. O grande questionamento é quando essas mudanças serão efetivamente percebidas e qual sua magnitude esperada.

Também não há dúvidas de que a concentração dos gases de estufa na atmosfera está crescendo. Faz, pelo menos, 50 anos que, com base nos estudos de Roger Revelle e Hans Suess, do Scripps Institution of Oceanography, La Jolla, Califórnia, Estados Unidos da América, começou a cair a crença na capacidade ilimitada dos oceanos em absorverem gás carbônico. Seguindo-se, quase simultaneamente, pela invenção de um instrumento capaz de medir com precisão o nível de CO2 no ar, por Charles Keeling, pesquisador do mesmo Scripps Institution of Oceanography. Esse aparelho passou a ser usado para medições sistemáticas no Havaí, na encosta de um vulcão desativado, no meio do Oceano Pacífico, longe de centros industriais. E foram essas medições, uma série de dados com cerca de 50 anos, que possibilitaram a conclusão de que o nível de CO2 na atmosfera está aumentando rapidamente. Comparando-se com os resultados de análises químicas de bolhas de ar presas em geleiras, cujas idades remontam retroativamente a mil anos de monitoramento, não restaram dúvidas de que, de fato, o aumento na concentração de gás carbônico no ar teve início com a Revolução Industrial.

Além do mais, destaca-se que o CO2 é apenas um dos chamados gases de estufa, cuja concentração na atmosfera cresce de forma muito rápida. Há, ainda, o óxido nitroso (NO2) e o metano (CH4), para motivo de preocupações. O primeiro tendo como fonte, por exemplo, o uso de fertilizantes nitrogenados na agricultura, e o segundo, conhecido como gás dos pântanos, as áreas alagadas, em particular as grandes plantações de arroz irrigado, e as criações de animais ruminantes (bovinos, principalmente). Duas atividades, fontes conhecidas de metano, que requerem cada vez mais expansão frente às necessidades crescentes de alimentação da população mundial.

Estima-se que a humanidade despeja anualmente 6 bilhões de toneladas de carbono (na forma de CO2) na atmosfera. A metade ( 3 bilhões de toneladas de carbono) acaba ficando no ar. Os oceanos absorvem 1,5 bilhões de toneladas de carbono, e fontes não claramente identificadas acabam consumindo outro tanto. A preocupação é saber o quanto próximo da saturação encontram-se essas fontes que hoje não estão bem identificadas. Pois a sua capacidade de continuar retirando carbono do ar nesses níveis pode ser decisiva no ciclo biogeoquímico desse elemento na natureza.

Determinar mudanças no clima mundial com base em respostas associadas às variações na concentração dos gases de estufa que estão sendo injetados na atmosfera não é algo simples. A grande indagação científica é como o clima mundial poderá mudar assim que a concentração desses gases atingir determinado nível. Esse problema tem dado origem a estudos que buscam apontar o que poderia acontecer no comportamento do clima global diante do aumento nos gases de estufa na atmosfera, da ordem de duas a quatro vezes por exemplo; relativamente à sua concentração no período pré-Revolução Industrial. Mesmo com todas as simplificações possíveis, o problema permanece extremamente complicado de ser resolvido porque a concentração de um gás de estufa muito importante, no caso o vapor de água, não pode ser especificada com precisão.

O principal ponto de divergência científica no debate do aquecimento global está ligado aos mecanismos de retroalimentação (feedbacks) que envolvem a água, nos seus três estados físicos, e suas possíveis influências no clima da Terra. O termo retroalimentação pode significar tanto ampliar como atenuar uma perturbação inicial. No primeiro caso, é dita positiva, e, no segundo, negativa. Qualquer modelo de clima global tem de lidar com muitos mecanismos de retroalimentação simultaneamente. Considerar esses mecanismos de forma isolada pode levar a resultados diferentes, e até mesmo opostos.

Contrastando com a elevação sistemática na concentração de CO2 na atmosfera no últimos 150 anos, as temperaturas do Globo têm mostrado comportamento errático. Até por volta de 1940, a temperatura da Terra aumentou de forma consistente. Logo em seguida essa tendência desapareceu, voltando a surgir novamente após 1980.

Os resultados dos modelos de previsão de mudanças climáticas melhoraram muito a partir da inclusão do papel desempenhado pelos aerossóis, partículas sólidas (poluentes) que refletem a radiação solar, atenuando o aquecimento provocado pelos gases de estufa. Porém, o tempo que os aerossóis permanecem na atmosfera é muito menor do que o de gases de estufa. Esse fato pode atenuar seu papel futuro, diante de aumento nos níveis dos gases de estufa, apesar de acompanhado de aumento de aerossóis.

Mesmo com todas incertezas científicas, admite-se que algumas mudanças climáticas são muito prováveis, outras prováveis, e há também aquelas incertas; caso continuem as emissões dos gases de estufa nos níveis atuais. No primeiro grupo há aumento na temperatura média da superfície da Terra, na faixa de 1,4 °C a 5,8 °C, e uma elevação no nível médio dos mares, de 8 a 88 cm, por volta do ano 2100; relativamente a 1990 (IPCC, 2001). Nas mudanças prováveis, inserem-se o aumento de chuvas nas elevadas latitudes do Hemisfério Norte e diminuição nas latitudes médias. O que sugere a possibilidade de expansão da fronteira agrícola no norte do Canadá e na Sibéria. Como altamente incertas, destacam-se a previsão de variabilidades climáticas em pequena escala (regiões específicas) e mudanças de freqüência e intensidade de fenômenos tipo furacões, secas, alagamentos e El Niño, por exemplo.

Um dos possíveis setores afetados mundialmente pelas possíveis mudanças climáticas é a agricultura. Para compreender como as culturas agrícolas responderiam às mudanças climáticas decorrentes de alterações na composição da atmosfera e suas potenciais conseqüências socioeconômicas nas principais regiões de produção mundial, inúmeros trabalhos têm sido realizados com base em estudos de cenários e em modelagem e simulação.

Destaca-se que a agricultura, dos anos 1950 para cá, apresentou aumentos de rendimento e de produção sem precedentes na história. Isso devido ao emprego de variedades geneticamente melhoradas, ao uso de fertilizantes, ao uso de defensivos agrícolas, à irrigação e a todo conjunto de práticas de manejo. Nos anos 1970, com a crise energética, a euforia da chamada "Revolução Verde" passou a ser questionada pelo excessivo uso de energia, pela degradação do ambiente, pela contaminação de águas e, até mesmo, pela destruição de sistemas sociais primitivamente estabelecidos. Nos anos 1980, também surgiu a preocupação com os possíveis impactos na agricultura decorrentes de possíveis mudanças no clima, por causa da elevação do nível de CO2 e de outros gases de estufa. Assim, alguns estudos foram feitos, visando a avaliar impactos nas principais regiões de produção no mundo, para daqui a 50 ou 100 anos. A preocupação é com a capacidade de suprir adequadamente alimentos para a população que está sendo projetada como superior a 10 bilhões de pessoas, já na metade da próxima década.

As avaliações têm sido feitas com base nos possíveis impactos das mudanças climáticas na agricultura em escala nacional, regional e global e suas conseqüências no sistema mundial de alimentos. O problema é de grande complexidade, pois envolve relações físicas e econômicas em termos mundiais. Em geral, o tema tem sido cientificamente tratado mediante estudos de cenários de mudanças climáticas, estimativas de impactos locais, agregação de resultados para estimar impactos nacionais e regionais e simulação dinâmica sobre impacto no sistema mundial de alimentos.

Um cenário de mudanças climáticas é definido como um conjunto fisicamente consistente de mudanças nas variáveis meteorológicas com base em projeções de níveis de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases de estufa na atmosfera. A base dos estudos tem sido o uso de modelos GCMs (General Circulation Models). Três deles têm sido usados principalmente: GISS (Goddard Institute for Space Studies), GFDL (Geophysical Fluid Dynamics Laboratory) e UKMO (United Kingdom Meteorological Office). Esses modelos projetam mudanças nas médias mensais de variáveis climáticas para faixas de latitude e longitude. Esses modelos são os meios mais avançados para se preverem futuras conseqüências climáticas pelo aumento dos gases de estufa. Eles simulam o regime térmico razoavelmente bem, porém o mesmo não ocorre com o regime hídrico, além de terem o seu desempenho variável conforme a região do globo. Além disso, não projetam mudanças confiáveis na variabilidade climática. E esses pontos são importantíssimos para avaliar os efeitos sobre a produtividade agrícola. Não obstante, são as melhores ferramentas que a ciência dispõe no momento para avaliar impactos que devem ocorrer em horizontes de tempo de até cem anos.

A melhor forma é interpretar esses resultados como projeções, e não como previsões. Uma previsão é um cenário cujos resultados são considerados mais prováveis de ocorrer. Uma projeção, por outro lado, é baseada em uma série de pressuposições e pode ser feita com qualquer conjunto de pressuposições, não necessariamente o mais provável de ocorrer.

Estudos realizados na Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), com o horizonte de tempo do ano 2060, envolvendo 25 países, entre os quais o Brasil (sendo projetados impactos negativos nas culturas de trigo e de milho e positivos na cultura de soja), mostraram que o efeito da duplicação da concentração de CO2, ou de efeito similar a essa magnitude, pelo incremento de outros gases de estufa, poderá, em escala mundial, ser pequeno. Isso se comparado ao aumento de produção requerido para alimentar a população mundial na metade do próximo século, por exemplo. As regiões mais afetadas seriam as da faixa tropical, aumentando ainda mais a discrepância entre as hoje consideradas nações pobres e ricas.

Que o debate do aquecimento global é científico e político ao mesmo tempo não há margem para dúvidas. Particularmente quando entra no jogo o controle das emissões de gases pelas atividades industrial e agrícola, que asseguram o padrão de vida elevado às sociedades ditas evoluídas. E, por enquanto, a solução dos impasses parece ser mais política do que científica.

Para a melhoria dos debates sobre o tema mudanças climáticas e agricultura, deixam-se como sugestão de leitura os relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change (2001a, 2001b e 2001c), Philander (1998) e Symposium by the American Society of Agronomy (1995).


1 Pesquisador da Embrapa Trigo, Cx. P. 451, CEP 99001-970 Passo Fundo, RS. Bolsista do CNPq-PQ. cunha@cnpt.embrapa.br

 


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