Embrapa Trigo
 
Dezembro, 2012
141
Passo Fundo, RS
3. Conceito, manutenção e restauração ou recuperação da fertilidade do solo em “sistema plantio direto

3.1. Resgate do conceito de fertilidade do solo

A busca por aumento de produtividade, alicerçada no conceito de fertilidade do solo expresso exclusivamente por atributos de natureza química e pelo uso intensivo de corretivos e de fertilizantes minerais, nitidamente está perdendo força e sendo substituída pela implementação das diretrizes da agricultura conservacionista, cenário em que o resgate do enfoque amplo do conceito de fertilidade do solo, expresso a partir do primeiro século depois de Cristo e reduzido ao longo do século IX, assume relevância. A otimização de sistemas agrícolas produtivos, embasada em gestões incompatíveis com a promoção da fertilidade biológica, física e química do solo e descomprometida com a busca pelo equilíbrio dinâmico do agroecossistema e de seu entorno, mostra-se dessincronizada ante a expectativa de alcance de uma agricultura tendente à sustentabilidade. Nesse contexto, o resgate da base conceitual de fertilidade do solo, na qual biologia e propriedades físicas do solo e prevenção de perdas de qualquer ordem, seja por erosão, lixiviação, volatilização e eluviação, desempenham papéis preponderantes, constitui referencial para a gestão conservacionista de sistemas agrícolas produtivos.

A fertilidade do solo, antes da era cristã, era considerada nutrimento dado pelo solo às plantas. Nutrimento era relacionado ao revolvimento do solo, ao pousio das terras cultivadas, à diversificação de culturas e à adubação do solo com dejetos. Em 42 d.C., a fertilidade passou a ser interpretada como resultante da integração das faces biológica, física e química do solo, sendo entendida como capacidade contínua e renovável do solo, garantida pelo cultivo da terra com técnicas apropriadas, como adubação e diversificação de culturas. Naquela época, afirmava-se: "O agricultor deve cultivar plantas em beneficio da terra, pois os legumes a enriquecem". Essa percepção de fertilidade do solo serviu de base para os povos tirarem da terra seu sustento por cerca de 1.700 anos. A partir do século XVIII, despontou a teoria humista, na qual se acreditava que o húmus era o alimento das plantas. Segundo essa teoria, que perdurou até o início do século XIX, a fertilidade do solo dependia, exclusivamente, do teor de húmus do solo e era avaliada pela cor do solo. Em 1804, surgiu a noção atual de fertilidade do solo, expressa pelo princípio da restituição, demonstrando que o alimento das plantas não era o húmus e sim os sais solúveis contidos nele. Esse princípio contempla duas enunciações: a fertilidade do solo depende da disponibilidade de elementos solúveis no solo; e a fertilidade do solo pode ser regenerada pela adição ao solo desses elementos ou de substâncias capazes de liberá-los na forma solúvel, para restituir o que as colheitas exportam. Porém, foi em 1842 que essas duas enunciações foram consolidadas em postulados de extraordinária importância científica para o estabelecimento da teoria mineralista. A teoria mineralista reduziu o conceito de fertilidade à capacidade do solo de fornecer nutrientes às plantas, em quantidade e proporção adequadas, e de prevenir a presença de elementos tóxicos para o seu desenvolvimento.

Como, na época, mobilização intensa de solo e diversificação de culturas eram práticas rotineiras, as faces biológica e física da fertilidade do solo deixaram de ser enfatizadas, passando-se a tratar a fertilidade do solo enfaticamente sob o ponto de vista químico. Assim, os estudos voltaram-se para a identificação e a quantificação dos elementos nutritivos das plantas, que se tornaram indicadores da fertilidade do solo, transformando a noção de que "a fertilidade é o efeito da riqueza do solo em elementos minerais solúveis" em meta da pesquisa agronômica. Com base nessa teoria, a ciência da fertilidade do solo evoluiu e consolidou seu conceito atual que é restritivo às propriedades químicas do solo, pois as mobilizações de solo, processadas safra após safra, com arações, subsolagens, escarificações, gradagens etc., ao padronizarem ou homogeneizarem fisicamente o solo da camada arável, induziram a percepção de que a ação da biologia do solo na estruturação e/ou condicionamento do solo para o desenvolvimento das plantas se tornara dispensável.

Na atualidade, cerca de 40 anos após a adoção do plantio direto, é notória a necessidade de reintegrar, ao conceito vigente de fertilidade do solo, aspectos relativos à biologia e à física do solo, que por mais de 200 anos tiveram seus efeitos obscurecidos pelas recorrentes mobilizações de solo e pela predominância da prática de monocultivos.

A fertilidade do solo, subsidiada pelos fundamentos do conservacionismo, da conservação do solo e da agricultura conservacionista, requer abrangência maior do que a habitual, expressa apenas pela reação do solo (pH), disponibilidade de nutrientes às plantas e nível de matéria orgânica (Figuras 1 e 2). As propriedades físicas do solo, armazenamento e disponibilidade de água, armazenamento e difusão de calor, fluxo de oxigênio, permeabilidade do solo ao ar e à água e resistência mecânica do solo à penetração de raízes constituem elementos indissociáveis da fertilidade do solo.

Mobilização intensa e sucessiva da camada arável do solo, ao elevar a atividade biológica e acelerar a decomposição ou oxidação da matéria orgânica e fracionar e desarranjar os agregados do solo, embora padronize ou homogeneíze fisicamente o solo da camada arável, altera a estrutura do solo, tornando os agregados menores e menos estáveis. Esses processos de redução de diâmetro, de desordem e de desestabilização de agregados na camada arável, sem o devido aporte de material orgânico ao solo, promovem progressiva redução e descontinuidade dos poros do solo e elevação da densidade do solo, com reflexos negativos diretos na permeabilidade do solo ao ar e à água e na resistência mecânica do solo à penetração de raízes. A camada superficial do solo torna-se vulnerável à formação de crostas, que resultam em redução da taxa de infiltração de água no solo, em aumento da enxurrada e da erosão hídrica, e, até mesmo, em obstáculo à emergência de plântulas. A camada subsuperficial do solo, em decorrência de processos físico-químicos, torna-se densa e/ou compactada, contribuindo para a redução da quantidade de água disponível às plantas e para a redução dos fluxos descendente e ascendente de água no perfil, fatos que restringem o desenvolvimento radicular das plantas e, inclusive, antecipam déficits hídricos às plantas em curtos períodos sem chuva. Em consequência desse complexo de ações e reações integradas, o pH do solo tende à acidez, alterando a disponibilidade de nutrientes para as plantas e tornando o solo menos fértil.

As propriedades físicas do solo, em sistemas agrícolas produtivos submetidos a esse nível de mobilização de solo, são modificadas, padronizadas ou homogeneizadas a cada safra agrícola, pela ação dos implementos de preparo de solo. Em razão da recorrência dessas alterações, nesses sistemas as propriedades físicas do solo são desconsideradas como fatores indicadores do nível de fertilidade do solo. Ao contrário, sob “sistema plantio direto”, as propriedades físicas do solo deixam de ser recorrentemente modificadas pelos implementos agrícolas e tornam-se dependentes do tipo de estrutura do solo que é mantida e/ou desenvolvida ao longo das safras agrícolas. Como o tipo de estrutura do solo é, em grande proporção, produto da ação biológica do solo, em resposta à gestão e ao tipo de sistema agrícola produtivo e de modelo de produção adotados, e determinante das propriedades físicas do solo, que interferem nos atributos químicos do solo, a acepção do termo “fertilidade do solo” assume a interação das faces biológica, física e química e não mais simplesmente à expressão de indicadores pertinentes à teoria mineralista ou a aspectos de natureza química.

Em áreas sob “sistema plantio direto”, onde a mobilização intensa de solo deixa de ser realizada em cada safra agrícola, são a atividade biológica e as propriedades físicas do solo, expressas pela estrutura do solo, que determinam o condicionamento do solo para a semeadura e o desenvolvimento das espécies cultivadas. Sob esse ponto de vista, a estrutura do solo é amplamente dependente da quantidade, da qualidade e da frequência de adição de material orgânico ao solo. O material orgânico ativa a biologia do solo no processo de decomposição, tanto do material orgânico adicionado como da própria matéria orgânica presente no solo; o processo de decomposição determina o tipo de estrutura a ser assumida pelo solo e, em consequência, define as propriedades físicas de solo ao longo do tempo; e a estrutura e as propriedades físicas do solo condicionam o desenvolvimento das raízes das plantas para extraírem da solução do solo os nutrientes requeridos. Portanto, a simples avaliação do nível de nutrientes no solo, tradicionalmente processada mediante análise química de amostras de solo, não necessariamente expressa o real estado de fertilidade de um solo manejado sob “sistema plantio direto”. O solo poderá apresentar os parâmetros químicos nos níveis adequados, porém não deter estrutura ou propriedades físicas apropriadas para o desenvolvimento satisfatório do sistema radicular das plantas e suficiente absorção dos nutrientes requeridos.

Nas regiões subtropical e tropical do Brasil, a quantidade de material orgânico requerida pela biologia de solos cultivados sob “sistema plantio direto”, para mantê-los com estrutura adequada ao estabelecimento e desenvolvimento das plantas, oscila entre 8.000 e 12.000 kg/ha por ano. Essa quantidade deve ser provida pelos restos culturais das espécies econômicas cultivadas ou pelo cultivo de plantas de cobertura de solo ou adubos verdes. A relação palha:grão das principais espécies cultivadas é inferior à unidade, ou seja, a massa de resíduos culturais é inferior a massa de grãos produzida por unidade de área. A cultura de soja, por exemplo, ao produzir 3.600 kg/ha de grãos, seguramente não gera 3.600 kg/ha de resíduo cultural. Da mesma forma, a cultura de milho, ao produzir 8.000 kg/ha de grãos, não gera 8.000 kg/ha de palha. Portanto, nenhuma dessas espécies, cultivada em monocultivo e com esse nível de produtividade, satisfaz a quantidade de material orgânico requerido pela biologia do solo para promover e manter a estrutura do solo como fator condicionante da fertilidade do solo.

A qualidade de material orgânico aportado ao solo está na dependência de sua relação carbono:nitrogênio (C:N). Quando a relação C:N do material orgânico se aproxima da relação C:N idealmente requerida pelos microrganismos componentes da biologia do solo, que é da ordem de 30:1, sob condição igualmente ideal de umidade e aeração para a vida dos microrganismos, a taxa de decomposição é máxima, resultando na rápida transformação do material orgânico adicionado ao solo em CO2. De outro modo, quanto mais a relação C:N se aproximar de 30:1, menor será o potencial de sequestro de carbono pelo solo e, consequentemente, maior será a taxa potencial de emissão de gases de efeito estufa. Além do aspecto relativo à taxa de emissão de gases de efeito estufa, a biologia do solo, ao decompor material orgânico de baixa relação C:N, não promove e nem estabiliza eficientemente os agregados e a estrutura do solo. Exemplificando: sistemas agrícolas produtivos que contemplem modelos de produção estruturados por espécies de baixa relação C:N, como soja, canola (Brassica napus L.), nabo forrageiro (Raphanus sativus L.), ervilhaca (Vicia sativa) e outras leguminosas, requerem elevada quantidade e/ou frequência de aporte de material orgânico ao solo para promoverem estrutura de solo condicionadora de solo fértil. A opção, portanto é estabelecer diversificação de espécies, em rotação, sucessão e/ou consorciação de culturas, que promova elevada relação C:N.

A frequência de aporte de material orgânico ao solo está associada à relação C:N do material orgânico, às condições de clima (umidade e temperatura), à intensidade de mobilização de solo (incorporação e semi-incorporação de material orgânico ao solo ou manutenção do material orgânico na superfície do solo) e à quantidade de material orgânico aportado ao solo. Todos esses fatores interferem diretamente na atividade biológica do solo, ou seja, na taxa de decomposição do material orgânico.

Um método simples para verificar se a frequência de aporte de material orgânico ao solo, proporcionada por um determinado modelo de produção, está adequada, é observar, ao fim do ciclo de uma cultura, se ainda há, na superfície do solo, presença de resíduos culturais da espécie anteriormente cultivada. Nesse momento, a detecção da presença de material orgânico ainda não decomposto indica que a frequência de aporte de material orgânico ao solo está sendo adequada, pois antes de findar a decomposição do material orgânico aportado pela safra anterior, uma nova adição de material orgânico está sendo processada.

Em referência a avaliação da ocorrência ou não de sequestro de carbono ou de mitigação dos gases de efeito estufa, proporcionada por uma determinada espécie vegetal, um método expedito de avaliação é comparar o período correspondente ao ciclo completo da cultura com o período correspondente à decomposição plena de seus restos culturais mantidos na superfície do solo. Se o período de decomposição do material orgânico da cultura for inferior ao de seu ciclo de vida, significa que essa espécie, sob o manejo considerado, não apresenta potencial para sequestrar carbono e nem para mitigar a taxa de emissão de gases de efeito estufa. Portanto, modelos de produção que geram material orgânico em quantidade e qualidade aquém da demandada biológica do solo, não constituem práticas conservacionistas promotoras de fertilidade do solo e nem mitigadoras de gases de efeito estufa.

Sob esse enfoque, é evidente que às características estruturais das plantas - raiz e palha - está reservada a quantidade e a qualidade de carbono orgânico produzido, fatores estes responsáveis pela intensidade da atividade biológica do solo, pela qualidade estrutural do solo e, consequentemente, pela definição do padrão de fertilidade do solo. A integração do trinômio biologia, física e química do solo, para a promoção da fertilidade do solo, está indissociavelmente vinculada ao modelo de produção estabelecido, que, por sua vez, é dependente das características estruturais e comportamentais das espécies que o compõe. Em adição, esse trinômio está na dependência também de interferências sinérgicas que equipamentos agrícolas de manejo de solo promovem, fundamentalmente, em referência ao aprofundamento do sistema radicular das plantas cultivadas.

Portanto, o resgate do conceito de fertilidade do solo suscita preocupações relativas ao enfoque da gestão conservacionista de sistemas agrícolas produtivos e à mitigação da taxa de emissão de gases de efeito estufa, em que o pousio das terras ao longo da safra de inverno, amplamente praticado no Brasil, necessita ser extinto e substituído por modelos de produção diversificados e associados à mecanização agrícola, para viabilizar aprofundamento de raízes e, consequentemente, promover e estabilizar a estrutura do solo. Esse novo enfoque enfatiza um repensar de que o resgate do conceito de fertilidade do solo passe a emergir de fatores intrínsecos do solo e de características estruturais e comportamentais da diversidade de espécies presentes, que qualificam a intervenção antrópica substanciada na preservação, manutenção e restauração ou recuperação dos elementos da biosfera ou dos recursos naturais.

3.2. Componentes da fertilidade do solo

O nível de fertilidade do solo, ao contemplar aspectos biológicos, físicos e químicos, é regido, fundamentalmente, pela estrutura do solo. A estrutura do solo governa os atributos determinantes da capacidade de armazenamento e de disponibilidade de água, da capacidade de armazenamento e de difusão de calor, da difusão de oxigênio, da permeabilidade ao ar e à água, da resistência à penetração de raízes, do nível de acidez e da disponibilidade de nutrientes (Figuras 1 e 2).

A estrutura do solo é conceituada como a relação entre o volume realmente ocupado pelas partículas do solo e o volume aparente do solo, variando com as dimensões dos poros existentes entre as partículas. De outro modo, estrutura do solo é o arranjo espacial das partículas que o compõe, decorrente de processos pedogenéticos, dos quais a ação biológica assume relevância, e/ou de ações antrópicas relativas ao manejo. Sob o enfoque de sistema agrícola produtivo, a estrutura do solo resgata o conceito amplo de fertilidade do solo, não o limitando exclusivamente a aspectos químicos, genericamente considerados como reação do solo (pH) e teor de nutrientes.

A agregação e a estabilidade dos agregados do solo, que determinam o tipo e a qualidade da estrutura do solo, são diretamente dependentes da quantidade e da qualidade da matéria orgânica do solo. A matéria orgânica interage com minerais do solo, formando complexos organominerais que resultam na formação de partículas secundárias de diversos tamanhos e formas. Em decorrência de a quantidade e a qualidade da matéria orgânica do solo ser resultante da quantidade, da qualidade e da frequência de aporte de material orgânico ao solo, infere-se que as espécies vegetais integrantes dos modelos de produção constituem o fator primordial responsável pelo desenvolvimento da fertilidade do solo. Portanto, o carbono orgânico aportado ao solo, oriundo da fitomassa da parte aérea e das raízes das plantas, de mucilagens e de exsudatos radiculares e da biomassa microbiana do solo, potencializa essa interação, formando e estabilizando agregados. A formação de agregados, por sua vez, diminui a ação dos microrganismos decompositores, contribuindo para o acúmulo de compostos orgânicos no solo, de sequestro de carbono e, em decorrência, de mitigação da taxa de emissão de gases de efeito estufa, principalmente em solos não mobilizados.

A magnitude do fluxo de material orgânico aportado pelo modelo de produção aplicado ao sistema agrícola produtivo, bem como a qualidade da fonte de carbono adicionado, determina a intensidade da atividade biológica no solo, a quantidade e a qualidade de compostos orgânicos secundários derivados e, consequentemente, influi nas propriedades do solo emergentes do ciclo do carbono, como nível de matéria orgânica, agregação, porosidade, aeração, infiltração de água, retenção de água, capacidade de troca de cátions, balanço de nitrogênio etc. Em síntese, o modelo de produção aplicado ao sistema agrícola produtivo, que confere qualidade, quantidade e periodicidade ao aporte de carbono ao solo, associado ao modo de manejo dos resíduos culturais, que interfere na taxa de decomposição do material orgânico adicionado, é que, em essência, promove, mantém ou degrada a fertilidade do solo.

3.3. Gestão da fertilidade do solo

O caráter de sustentabilidade que se pretende imprimir aos agroecossistemas, fundamentado no atendimento de necessidades socioeconômicas, na segurança alimentar da humanidade e na preservação dos recursos naturais, está na dependência da obtenção de um novo equilíbrio dinâmico dos fluxos de entrada e de saída de energia e de matéria do sistema e da consequente qualidade das relações estabelecidas com os sistemas do entorno. Em decorrência, elementos indicadores de sustentabilidade de um agroecossistema podem ser representados por atributos que expressam o grau de organização e de disciplina dos processos implicados no sistema e da qualidade resultante das relações com os sistemas vizinhos.

Do ponto de vista da fertilidade do solo, relevante indicador do caráter de sustentabilidade de agroecossistemas está associado à dinâmica dos fluxos de adição e de decomposição do material orgânico aportado ao solo pelos modelos de produção, em decorrência da gestão do sistema agrícola produtivo, fundamentada na preservação, manutenção e restauração ou recuperação dos elementos da biosfera ou dos recursos naturais.

Nesse cenário de tomada de decisão em referencia à gestão de um sistema agrícola produtivo, destacam-se os aspectos relativos à diversidade e ao arranjo espaço-temporal das espécies que compõem o modelo de produção, à intensidade de mobilização do solo, à quantidade, à qualidade e ao posicionamento no solo dos agroquímicos empregados, com ênfase para corretivos e fertilizantes, e à prevenção de perdas por erosão, lixiviação, volatilização e eluviação. Enquanto a intensidade de mobilização do solo e a quantidade, qualidade e posição dos agroquímicos no solo estão associadas à taxa de decomposição do material orgânico aportado ao solo, a diversidade e o arranjo espaço-temporal das espécies, determinados pelo modelo de produção adotado, estão associados à quantidade e à qualidade da matéria orgânica resultante no solo.

A taxa de perda de matéria orgânica do solo é altamente influenciada pela mobilização do solo, por mesclar resíduos culturais e nutrientes na camada revolvida, oxigenar o solo e, consequentemente, estimular a ação de microrganismos decompositores. Em um mesmo solo, o preparo convencional pode duplicar a taxa de decomposição do material orgânico aportado ao solo em relação ao “sistema plantio direto”. Sistema agrícola produtivo em que a gestão contempla mobilização intensa de solo, remoção ou queima de resíduos culturais e modelo de produção que envolve espécies de baixa produtividade de resíduos culturais e/ou pousio sazonal, e, consequentemente, resulta em baixa produtividade de fitomassa, normalmente gera taxa anual de aporte de material orgânico ao solo inferior a taxa anual potencial de decomposição. Essa condição determina, inclusive, decomposição da matéria orgânica estável do solo, implicando em redução do conteúdo de carbono do solo, desestabilização estrutural do solo e, por consequência, degradação da fertilidade do solo.

Fertilização recorrente do solo, exclusivamente em superfície, contribui para concentração de raízes na camada superficial do solo, restringido a ação biológica estruturadora de solo a uma zona restrita de indubitável risco ao pleno desenvolvimento das plantas cultivadas em períodos de baixa disponibilidade hídrica.

Em síntese, os processos implicados na fertilidade do solo, sem dúvida, estão associados à gestão de modelos de produção que promovam maximização do aporte de material orgânico ao solo e minimização de perdas. Nesse sentido, é relevante considerar que, além dos resíduos culturais produzidos pela parte aérea das plantas, há o material orgânico aportado pelas raízes, que, incontestavelmente, assume papel preponderante na construção da fertilidade biológica, física e química do solo. Modelos de produção que contemplam espécies de abundante e agressivo sistema radicular, como gramíneas forrageiras perenes, que alocam maior fração de carbono fotossintetizado para as raízes do que espécies anuais, são mais eficientes em elevar o estoque de matéria orgânica no solo e em induzir fertilidade ao solo. Mobilização profunda de solo restrita à linha de semeadura, com concomitante deposição de corretivos e fertilizantes em profundidade, constitui prática promotora de aprofundamento de raízes e, consequentemente, de ampliação da camada de solo fértil.

3.3.1. Ações vegetativas para construção de fertilidade do solo

É inquestionável que o arranjo temporal da diversidade de espécies que devem compor modelos de produção, com o intuito de otimizar sistemas agrícolas produtivos e induzir fertilidade ao solo, é diretriz dependente de mercado e de tecnologia de produto gerada pelo melhoramento genético vegetal, que contemple a exploração das limitações impostas pelo clima e pelo solo. As crescentes demandas geradas pela agricultura não permitem mais a prática do pousio das terras. O melhoramento genético vegetal, além de criar cultivares de espécies comerciais de variados ciclos e com maior flexibilidade de época de cultivo, apresenta potencial para criar cultivares ativas na promoção da fertilidade do solo. A atividade das espécies melhoradas em relação às espécies espontâneas refere-se: à produção de fitomassa; à ciclagem e reciclagem de nutrientes, a partir de formas normalmente indisponíveis; à tolerância à acidez, a elementos tóxicos e à carência ou ao excesso de água; e, entre outras, a estresses bióticos. Assim, a exploração de sistemas agrícolas produtivos, mediante estruturação de modelos de produção que integrem espécies e cultivares melhoradas para tais características e comportamentos, certamente, é protagonista de emergência de fertilidade do solo.

A ampliação da biodiversidade e a diversificação de modelos de produção nas regiões de clima subtropical e tropical do Brasil, visando expandir a adoção do “sistema plantio direto” em oito milhões de hectares, em atendimento aos objetivos do Plano ABC, estão na dependência da adoção de modelos de produção estruturados para produzir grãos, fibras, pastagem e/ou floresta, mediante instituição do processo concatenado e ininterrupto colher-semear. Nesse cenário, a produção de grãos, em oito milhões de hectares na safra agrícola de inverno, não constitui alternativa dependente, exclusivamente, de solução tecnológica, estando diretamente associada à disponibilidade de mercado com logística adequada para recebimento, segregação, armazenamento, processamento e transporte destes grãos. Por outro lado, na atualidade, os sistemas integrados, agropastoril, agrossilvipastoril e silvipastoril, são percebidos como de maior viabilidade econômica para diversificar e intensificar modelos de produção nessa magnitude de área, em razão da disponibilidade de mercado seguro para carne, leite e madeira, e da carência de pastagem ao longo da safra agrícola de verão, na região de clima subtropical, e da safra agrícola de inverno, na região de clima tropical.

Na região de clima tropical, de modo genérico, a ampliação da biodiversidade e a diversificação de modelos de produção, podem ser promovidas pela implementação da cultura de milheto (Pennisetum glaucum (L.) R. Br.), cultivada para cobertura de solo ou para a integração lavoura-pecuária, em sucessão à cultura de soja. Contudo, em razão do regime pluvial dessa região, caracterizado por rigoroso déficit hídrico nos meses de junho, julho e agosto, esse modelo de produção apresenta limitações, tanto em cobertura de solo quanto em quantidade e qualidade de pastagem ofertada neste período invernal (Tabela 1). Outra opção é a adoção do binômio safra/safrinha, constituído pela sequência de culturas soja/milho, viabilizado pela redução do ciclo destas espécies, em mais de 30 dias, via melhoramento genético ao longo da década de 1990. Essas inovações tecnológicas resultantes da conjugação do melhoramento genético e do “sistema plantio direto” são apontadas como responsáveis por parte do expressivo aumento da produção de grãos do país, sem a correspondente expansão da área cultivada. Embora esse binômio imprima à agricultura tropical maior competitividade econômica, de modo similar à sucessão soja/milheto, apresenta limitada cobertura de solo no período de estabelecimento da safra agrícola de verão subsequente.

A partir dos anos 2000, o binômio soja/milho passou a ser aprimorado mediante o consórcio da cultura de milho safrinha com espécies e cultivares de braquiária (Brachiaria spp.), buscando viabilizar a integração lavoura-pecuária com oferta de pastagem e cobertura permanente de solo ao longo do período invernal (Tabela 1).

Esse novo modelo de produção em adoção, denominado de Sistema Santa Fé, singularmente estruturado por sucessão e consorciação de culturas anuais e semiperenes (soja/milho + pastagem), em “sistema plantio direto”, é caracterizado pelo cultivo de três safras agrícolas por ano em uma mesma gleba de terra, com apenas duas operações de semeadura, em razão do consórcio da cultura de milho safrinha com braquiária, implantado imediatamente em sequência à colheita da soja. Destacam-se como vantagens desse modelo de produção: instituição do processo colher-semear, que suprime períodos de entressafra agrícola; manutenção do solo permanentemente coberto com plantas vivas e/ou mortas e/ou restos culturais; adição de material orgânico ao solo, mesmo no período de intenso déficit hídrico, em quantidade acima de o que a biologia do solo potencialmente decompõe anualmente; e economicidade, decorrente da diversidade de exploração que valoriza a integração lavoura-pecuária com oferta de pastagem no período de déficit hídrico. O Sistema Santa Fé, portanto, além da braquiária que constitui opção de destaque entre as espécies cultivadas, com potencial para promover emergência de fertilidade no solo em razão da quantidade e da qualidade de fitomassa que aporta ao solo, assume relevância de cunho econômico, por viabilizar produção animal no período de déficit hídrico, como a terceira safra agrícola anual.

Na região de clima subtropical, de modo similar à região de clima tropical, a ampliação da biodiversidade e a diversificação de modelos de produção, em “sistema plantio direto”, são viabilizadas pelo cultivo de espécies anuais de inverno produtoras de grãos e de pastagens. Contudo, a expansão e a interiorização de indústrias de laticínios e abatedouros tem estimulado a expansão da integração lavoura-pecuária em detrimento à produção de grãos. Nesse sentido, espécies cultivadas, exclusivamente, como promotoras de cobertura de solo ao longo da safra agrícola de inverno são substituídas por espécies de aptidão forrageira. O incremento de área para o cultivo de espécies de inverno produtoras de grãos encontra-se, na atualidade, sensivelmente limitado por questões de mercado e da respectiva logística indispensável para imprimir estabilidade econômica a esse segmento da agricultura.

No atual nível de disponibilidade de tecnologia para a região subtropical, o processo colher-semear pode ser viabilizado pela ampliação do número de safras agrícolas por ano, principalmente, em decorrência da multissazonalidade e da amplitude do ciclo de híbridos ou variedades de milho, que flexibilizam a estruturação de modelos de produção. Contudo, considerando a ocorrência de chuva em todos os meses do ano e a formação de geada nos meses de inverno, não é possível reproduzir ou adotar literalmente o Sistema Santa Fé, como modelo representativo do processo colher-semear. Nesse contexto, o consórcio milho-braquiária, em um modelo intensivo de produção de grãos e pastagem, com possibilidade de permitir até três safras agrícolas por ano em uma mesma gleba de terra, é plenamente viável mediante produção de grãos de milho no período de setembro a janeiro e de pastagem no período de janeiro a maio, com cultivo de espécies de inverno em sequência (Tabela 2). Em adição, e de modo similar à região de clima tropical, a integração lavoura-pecuária, com ênfase para a pecuária leiteira, denota viabilidade econômica para intensificar e diversificar modelos de produção, pois nessa região, ao mesmo tempo em que há estrutura de mercado para leite, há carência de pastagem no período que transcorre a safra agrícola de verão - em média de novembro a maio -, quando os animais são forrageados com feno e concentrados, que encerram custos sensivelmente mais elevados do que as pastagens.

Do exposto depreende-se que a evolução de modelos de produção, tanto na região de clima tropical como na região de clima subtropical do Brasil, fundamentada no “sistema plantio direto” e no uso de culturas oriundas de programas de melhoramento vegetal orientados à criação de cultivares com flexibilidade para compor novos modelos de produção, e associada à correção de deficiências químicas do solo e à nutrição equilibrada das plantas, segundo princípios da agricultura de precisão, possivelmente, esteja tornando a agricultura brasileira na mais moderna e eficiente agricultura conservacionista praticada no mundo. Percebe-se, portanto, que é a interação entre modelos de produção diversificados e “sistema plantio direto” que otimiza o sistema agrícola produtivo e imprime caráter de sustentabilidade ao agroecossistema.

3.3.2. Ações mecânicas na construção da fertilidade integral do solo

A viabilização da adoção em larga escala de modelos de produção constituídos por diversidade de espécies capazes de promover fertilidade do solo requer da mecanização agrícola evoluções concomitantes, compatíveis e sincronizadas.

Semeadoras para plantio direto devem assumir caráter de versatilidade quanto à semeadura de múltiplas espécies e, inclusive, de consórcios de espécies - grãos e pastagens, por exemplo - e permitir variados espaçamentos entre linhas e uso de múltiplos elementos rompedores de solo para ampliar a adoção do processo colher-semear. Nesse sentido, a implementação de modelos de produção com potencial para induzir emergência de fertilidade em solo demanda semeadoras equipadas com elementos rompedores de solo tipo haste sulcadora de espessura da ordem de 10 mm, para operar em profundidade de até 200 mm e permitir deposição de corretivos e fertilizantes até essa profundidade e, consequentemente, promover aprofundamento de raízes.


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